sábado, 14 de julho de 2007

O ESTRANGEIRO - ALBERT CAMUS

Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames." Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.

O Estrangeiro

Prefácio para "O Estrangeiro"

por Albert Camus

Eu resumi O Estrangeiro há algum tempo atrás, com um comentário que admito que era extremamente paradoxal: "Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe, corre o risco de ser sentenciado à morte". Eu apenas quis dizer que o herói do meu livro é condenado porque não joga o jogo. Sob este aspecto, ele é estrangeiro para a sociedade em que vive; ele vaga na borda, nos subúrbios de uma vida privada, solitária e sensual.

Este é o motivo pelo qual alguns leitores ficaram tentados a olhar para ele como um pedaço de entulho social. Uma idéia muito mais precisa do personagem, ou pelo menos muito mais próxima das intenções do autor, emergirá se alguém apenas perguntar como Meursault não joga o jogo. A resposta é simples; ele se recusa a mentir. Mentir não é apenas dizer o que não é verdade. É também, e principalmente, dizer mais do que é verdade, e tanto quanto o coração humano é capaz, expressar mais do que se sente. Isto é o que nós todos fazemos, todos os dias, para simplificar a vida. Ele diz o que ele é, ele se recusa a esconder seus sentimentos, e imediatamente a sociedade se sente ameaçada. Pedem a ele, por exemplo, para dizer que se arrepende do seu crime, de maneira formal. Ele responde que o que sente é muito mais aborrecimento do que real arrependimento. E este sentido obscuro o condena.

Portanto, para mim Meursault não é um pedaço de entulho social, mas um homem pobre e nu, enamorado de um sol que não deixa sombras. Longe de estar destituído de todos os sentimentos, ele é animado por uma paixão que é profunda pois é obstinada, uma paixão pelo absoluto e pela verdade. Esta verdade ainda é uma negativa, a verdade sobre o que nós somos e o que nós sentimos, mas sem ela, nenhuma conquista sobre nós ou sobre o mundo será possível.

Ninguém estará muito enganado, portanto, ao ler O Estrangeiro como a história de um homem que, sem heroísmos, aceita morrer pela verdade. Também devo dizer, de novo paradoxalmente, que tentei descrever no meu personagem o único Cristo que merecemos. Será entendido, após minhas explicações, que eu disse isso sem nehuma intenção blasfema, e apenas com a afeição um pouco irônica que um artista tem o direito de sentir pelos personagens que cria.

Albert Camus

8 de Janeiro de 1955

"Quando nos vestimos na praia, Marie olhava-me com olhos brilhantes. Beijei-a. A partir desse momento, não falamos mais. Apertei-a contra mim, e tivemos pressa de encontrar um ônibus, de voltar, de ir para a minha casa e de nos atirarmos na minha cama. Tinha deixado a janela aberta, e era bom sentir a noite de verão escorrer por nossos corpos bronzeados"

O Estrangeiro

Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não buscamos lições, nem a amarga filosofia que se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e dos perfumes selvagens, tudo o mais nos parece fútil. Quando a mim, não procuro estar sozinho nesse lugar. Muitas vezes estive aqui com aqueles que amava, e discernia em seus traços o claro sorriso que neles tomava a face do amor. Deixo a outros a ordem e a medida. Domina-me por completo a grande libertinagem da natureza e do mar.

Nunca conseguira arrepender-me verdadeiramente de nada.Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie.

Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo caso, todas se equivaliam, e que a minha, aqui, não me desagradava em absoluto.

— Não, não consigo acreditar. Tenho certeza de que já lhe ocorreu desejar uma outra vida.

Respondi-lhe que naturalmente, mas que isso era tão importante quanto desejar ser rico, nadar muito de pressa ou ter uma boca mais bem feita. Era da mesma ordem. Mas ele me deteve e quis saber como eu imaginava essa outra vida. Então gritei:

— Uma vida na qual me pudesse lembrar desta vida.

Também eu me sinto pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à tenra indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que fora feliz e que ainda o era.

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