quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A Lua que não dei

A Lua que não dei

Compreendo pais - e me encanto com eles - que desejariam dar o
mundo de presente aos filhos. E, no entanto, abomino os que, a cada
fim de semana, dão tudo o que filhos lhes pedem nos shoppings onde
exercitam arremedos de paternidade. E não há paradoxo nisso. Dar o
mundo é sentir-se um pouco como Deus, que é essa a condição de um pai.
Dar futilidades como barganha de amor é, penso eu, renunciar ao sagrado.

Volto a narrar, por me parecer apropriado à croniqueta, o que me
aconteceu ao ser pai pela primeira vez. Lá se vão, pois, 45 anos.
Deslumbrado de paixão, eu olhava a menina no berço, via-a sugando os
seios da mãe, esperneando na banheira, dormindo como anjo de carne. E,
então, eu me prometia, prometendo-lhe: 'Dar-lhe-ei o mundo, meu amor.'
E não lho dei. E foi o que me salvou do egoísmo, da tola pretensão e
da estupidez de confundir valores materiais com morais e espirituais.

Não dei o mundo à minha filha, mas ela quis a Lua. E não me esqueço
de como ela pediu, a Lua, há anos já tão distantes. Eu a carregava nos
braços, pequenina e apenas balbuciante, andando na calçada de nosso
quarteirão, em tempos mais amenos, quando as pessoas conversavam às
portas das casas.

Com ela junto ao peito, sentia-me o mais feliz homem do mundo,
andando, cantarolando cantigas de ninar em plena calçada. Pois é a
plenitude da felicidade um homem jovem poder carregar um filho como se
acariciando as próprias entranhas. Minha filha era eu e eu era ela. Um
pai é, sim, um pequeno Deus, o criador. E seu filho, a criatura bem
amada.

E foi, então, que conheci a impotência e os limites humanos. Pois a
filhinha - a quem eu prometera o mundo - ergueu os bracinhos para o
alto e começou a quase gritar, assanhada, deslumbrada: 'Dá, dá, dá...'
Ela descobrira a Lua e a queria para si, como ursinho de pelúcia, uma
luminosa bola de brincar. Diante da magia do céu enfeitado de estrelas
e de luar, minha filha me pediu a Lua e eu não lha pude dar.

A certeza de meus limites permitiu, porém, criar um pacto entre pai
e filhos: se eles quisessem o impossível, fossem em busca dele. Eu
lhes dera a vida, asas de voar, diretrizes, crença no amor e,
portanto, estímulo aos grandes sonhos. E o sonho da primogênita
começou a acontecer, num simbolismo que, ainda hoje, me amolece o
coração. Pois, ainda adolescente, lá se foi ela embora, querendo
estudar no Exterior. Vi-a embarcar, a alma sangrando-me de saudade, a
voz profética de Kalil Gibran em sussurros de consolo:

'Vossos filhos não são vossos filhos, mas são os filhos e as filhas
da ânsia da vida por si mesma. Eles vêm através de vós, mas não de
nós.. E embora vivam convosco, não vos pertencem. (...) Vós sois os
arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.'
Foi o que vivi, quando o avião decolou, minha criança a bordo. No
céu, havia uma Lua enorme, imensa. A certeza da separação foi
dilacerante. Minha filha fôra buscar a Lua que eu não lhe dera.

E eu precisava conviver com a coerência do que transmitira aos
filhos: 'O lar não é o lugar de se ficar, mas para onde voltar.'

Que os filhos sejam preparados para irem-se, com a certeza de ter
para onde voltar quando o cansaço, a derrota ou o desânimo inevitáveis
lhes machucarem a alma. Ao ver o avião, como num filme de Spielberg,
sombrear a Lua, levando-me a filha querida, o salgado das lágrimas se
transformou em doçura de conforto com Kalil Gibran: como pai, não
dando o mundo nem Lua aos filhos, me senti arqueiro e arco,
arremessando a flecha viva em direção ao mistério.

Ora, mesmo sendo avós, temos, sim e ainda, filhos a criar, pois
família é uma tribo em construção permanente. Pais envelhecem, filhos
crescem, dão-nos netos e isso é a construção, o centro do mundo onde a
obra da criação se renova sem nunca completar-se. De guerreiros que
foram, pais se tornam pajés. E mães, curandeiras de alma e de corpo. É
quando a tribo se fortalece com conselheiros, sábios que conhecem os
mistérios da grande arquitetura familiar, com régua, esquadro,
compasso e fio de prumo. E com palmatória moral para ensinar o óbvio:
se o dever premia, o erro cobra.

Escrevo, pois, de angústias, acho que angústias de pajé, de índio
velho. A nossa construção está ruindo, pois feita em areia movediça. É
minúsculo o mundo que pais querem dar aos filhos: o dos shoppings. E
não há mais crianças e adolescentes desejando a Lua como brinquedo ou
como conquista. Sem sonhos, os tetos são baixos e o infinito pode ser
comprado em lojas. Sem sonhos, não há necessidade de arqueiros
arremessando flechas vivas.
Na construção familiar, temos erguido paredes. Mas, dentro delas,
haverá gente de verdade?

Cecílio Elias Netto é escritor e jornalista.

Nenhum comentário: